Os marxistas situaram a gênese da opressão das mulheres num processo histórico-social, superando uma abordagem essencialista, que situava na natureza humana a base da dominação e da subordinação.
Por Ana Rocha*
No livro ‘’A Ideologia Alemã”, Marx e Engels demonstram entender que a reprodução e a manutenção da vida dos indivíduos, assim como as relações sociais que os mesmos estabelecem, são tão importantes quanto as relações de produção. Em carta a Bloch, em 1890, Engels esclareceu: “(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância, determina a história é a produção e reprodução da vida real. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda”.
A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levantam sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige etc.., as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante.
Marx e Engels afirmaram em sua obra que a opressão da mulher coincide com o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e o surgimento das classes sociais. Indicaram que a história de submissão da mulher começa quando ela é afastada da produção social. Também mostraram que a subordinação não cessará abolindo-se apenas as distinções legais, mas sim, com uma transformação das estruturas econômicas e políticas geradoras de desigualdades.
Lenin deixou clara a estratégia da luta pela emancipação da mulher como componente da revolução proletária. E considerava tarefa primordial incorporar a mulher ao trabalho social produtivo e arrancá-la da escravidão do lar.
A Revolução de 1917 na Rússia foi um marco histórico na luta contra o capitalismo, significando a esperança de um mundo socialista, sem exploração e opressão. Mas a queda do muro de Berlim em 1989, simbolizou o colapso do “campo socialista” e do “socialismo real”, abalando convicções, propiciando o reordenamento na correlação de forças mundial e o surgimento de teorias que apregoavam o fim da história, da luta de classes e do trabalho, no contexto de tentar impor o pensamento único neoliberal.
Essa ofensiva reacionária tem seu contraponto no extraordinário desenvolvimento econômico e tecnológico da China, que passa a ser alvo dos raivosos ataques de Trump, e aqui no Brasil de Bolsonaro.
Mas o receituário neoliberal de redução do papel do Estado na economia e nas políticas públicas, a supremacia do mercado, a financeirização e a redução do investimento no setor produtivo da economia, resultando em mais desigualdades, mais desemprego, concentração da riqueza e exclusão social, junto com a desregulamentacao e flexibilizada do mundo do trabalho, com a redução do trabalho formal e aumento da informalidade, turvaram o entendimento da centralidade do trabalho, com repercussão nos estudos feministas.
A pensadora feminista norte-americana, Nancy Fraser, em entrevista ao jornal The Guardian, afirma: “Temo que o movimento pela libertação das mulheres tenha se enredado em uma ligação perigosa com esforços neoliberais para a construção de uma sociedade de livre-mercado. Isso explicaria porque ideias feministas, que já fizeram parte de uma visão de mundo radical, sejam cada vez mais expressas em termos individuais”… E continua: “ O que está por trás dessa alteração é uma mudança de ares no caráter do capitalismo. O capitalismo organizado pelo Estado de pós-guerra tem dado espaço a um novo formato – “desorganizado, globalizante, neoliberal.” Ao rejeitar o “economicismo” e politizando o “pessoal”, algumas feministas ampliaram a agenda política para desafiar as hierarquias de status pressupostas nas construções culturais de diferença de gênero.. O resultado deveria ter sido a expansão da luta por justiça, de forma a conter tanto a cultura, quanto a economia. Todavia, conclui Fraser, “o resultado real foi o foco unilateral em “identidade de gênero”, às custas de assuntos pão com manteiga, numa tentativa de reprimir toda a memória de igualdade social”
Já a estudiosa francesa, Daniele Kergoat, (2019), alerta para o fato de que a centralidade do trabalho (assalariado e doméstico), parece posta em questão pela fragmentação de eixos de luta. Para Kergoat, os gender studies (estudos de gênero), importados dos Estados Unidos, focam em novos objetos: – a hirearquização das sexualidades; – as políticas de subversão das identidades; – as tecnologias do corpo; – a segmentação de grupo de mulheres (que destruiria a noção de classe).
Segundo Kergoat, esses estudos, embora venham renovar a crítica da ideologia naturalista, se realizam no contexto da ocultação da questão do trabalho e da exploração.
A recente pandemia da Covid 19 chamou atenção para as conseqüências desastrosas da financeirização, do aumento do desemprego, da precarizacao e do trabalho informal, sobretudo para as mulheres, recolocando na ordem do dia a importância do setor produtivo da economia e o papel do Estado, a necessidade da valorização do trabalho, do desenvolvimento econômico, com geração de emprego e renda.
O importante e necessário esforço de destacar a dimensão subjetiva da dominação de gênero não pode nos levar a abdicar de qualquer perspectiva estrutural de um sistema econômico-político, de suas bases concretas. Fica evidente que o trabalho é uma questão central para entender o sistema de exploração e dominação. Está no centro das opressões de classe, gênero e raça. É também espaço de resistência e luta, lugar de solidariedade e cooperação, de socialização. E, portanto, fonte de emancipação individual e coletiva. O feminismo emancipacionista entende que a emancipação das mulheres se relaciona com a emancipação coletiva de todas as formas de exploração e opressão, com a emancipação humana. A lutas feminista e antirascista libertadoras se entrelaçam com a luta de classes, numa mesma perspectiva emancipatória.
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*Ana Rocha é jornalista e psicóloga, pós-graduada em Políticas Públicas e Governo e mestra em Serviço Social. É membra da Coordenação do Fórum Nacional do PCdoB sobre a Emancipação das Mulheres e do Comitê Central do PCdoB e é secretária da Mulher do PCdoB-RJ.
(BL)