Não pensei que pudéssemos chegar a um dia em que feministas iriam elaborar, articular e atuar contra a realização de uma conferência de políticas para as mulheres – maior expressão de participação de mulheres com a perspectiva da quebra da invisibilidade e da luta por direitos e igualdade.
Por Vanja Santos*
As conferências nacionais de políticas para as mulheres (CNPM) acontecem desde 2004, iniciadas por um governo progressista e apoiado pelo movimento feminista que traduziu o anseio de mudança da nossa sociedade e da vida das mulheres de nosso país, em políticas de Estado formuladas, debatidas e aprovadas por um amplo conjunto de representações das mulheres brasileiras: mulheres dos campos, das águas, das florestas, dos grandes centros urbanos, da periferia, da população de rua, das mulheres em seus territórios. Uma rica construção na perspectiva da emancipação das mulheres e do avanço civilizatório.
Foi durante a realização da 4ª CNPM, em 2016, em Brasília, que Dilma sofreu o impeachment. Um golpe na primeira mulher eleita presidente do Brasil pelo voto democrático. Reforçando o golpe político, agressões misóginas e machistas tomaram as ruas e as redes contra Dilma e sua representatividade feminina. E nós, mulheres, já sabíamos naquele momento que teríamos que resistir, reagir e lutar. O processo do golpe nos mostrou como podemos ser fragilizadas e desconstruídas nos espaços de poder e decisão. Lugares dos quais o patriarcado e sua construção cultural machista buscam, de forma incansável, nos manter distantes.
A partir desse momento, as investidas da extrema-direita definiram ataques a democracia executada por um governo ultraconservador, genocida, machista, misógino, racista, homofóbico e violento. O sucateamento dos equipamentos sociais de estado, direitos trabalhistas violados, desinvestimento em áreas importantes como a saúde, educação e políticas sociais, a fragilização das políticas voltadas para as mulheres e, sobretudo, os ataques diários aos direitos sexuais e reprodutivo, funcionaram como agravantes na tentativa de diminuir o papel da mulher na sociedade brasileira. Somos nós as atingidas por um projeto de governo de regressão civilizatória. Somos nós que estamos perdendo empregos, salários, as que mais sentimos o desmonte do SUS, o esfacelamento das escolas, a fila do INSS, o fim dos projetos de habitação popular e as que nesse momento de pandemia são maioria colocadas na linha da pobreza e da fome. São chefas de famílias que sem emprego, sem perspectivas fazem parte hoje da população de rua em vários lugares do Brasil. Somos violentadas e assassinadas sem que o Estado brasileiro tome uma iniciativa cabível, ao contrário, retira dinheiro da política de enfrentamento de violência contra as mulheres e da política de saúde para as mulheres.
Não bastasse atuar na perspectiva de um Estado mínimo e sem direitos, a negação da ciência por este governo fez com que, iniciando o segundo ano de enfrentamento a pandemia, atingíssemos cerca de 260 mil mortes e mais de 1800 mortes em apenas um único dia. Segundo maior índice de mortes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos que até um pouco mais de um mês era governado por seu semelhante, um presidente também negacionista.
É nesse cenário de luta pela vida, pela vacina para todos e todas, pelo auxílio emergencial e de luta pela democracia, que se desencadeia o processo ideológico da classe dominante e se dá o recrudescimento do conservadorismo e vimos, então, o Ministério de Damares fazer o chamamento da 5ª CNPM. Franca demonstração de que a vida da população brasileira nada vale frente ao compromisso de entrega de nossas riquezas para o capital internacional e, aproveitar o momento para “passar a boiada” executando uma conferência com altas doses de conservadorismo e autoritarismo, nos submetendo ao calabouço da insignificância como cidadãs remetidas aos caprichos de uma falsa e intolerante religiosidade. Impor como resultado uma vida sem direitos, onde “meninas vestem rosa” presas ao conceito da “família conservadora” e o “lar como militância possível”. Retrocessos que seriam impostos por força de uma conferência nacional, “supostamente” debatido com as mulheres em seus territórios. A barbárie nos impôs desafios. Como garantir o que já conquistamos como direitos e avançar no que necessitamos dar como resposta pra vida das mulheres reais, em uma conjuntura como a que estamos vivendo? A pergunta inquietante fez com que mulheres dos movimentos sociais e gestoras de secretarias de Mulheres estaduais protagonizassem ações de mobilização para avaliar e responder, na perspectiva de nenhum direito a menos, a construção de uma ampla mobilização contrária a realização da 5ª conferência nacional de políticas para as mulheres. Um passo atrás para impulsionar uma grande vitória, a vitória das mulheres e do povo brasileiro contra a política fascista de Bolsonaro. A corrente feminista emancipacionista impôs uma derrota ao governo e sua usurpação de direitos que foi publicada no Diário Oficial da União como resolução nº 1 de 23 de fevereiro de 2021.
“Não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando coisas que não posso aceitar”
Angela Davis
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*Vanja Andréa Santos é formada em Filosofia, presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM). Membra do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM).
(BL)