É difícil falar de maternidade desde a adolescência quando é fato que não se trata de uma situação ideal para o desenvolvimento das jovens mulheres, e sim de algo a ser enfrentado com acesso à educação sexual, saúde e melhores condições materiais. Mas ao passo que a gravidez precoce ocupa lugar entre as principais causas para a evasão escolar – quase 30% das mães com até 19 anos não concluíram nem o ensino fundamental no Brasil em 2018 – , é necessário reforçar o debate sobre a assistência à maternidade como política de Estado fundamental para a emancipação das mulheres.
Por Keila Pereira* e Caio Guilherme**
Em dados bastante desatualizados, pelo menos 75% das adolescentes com filhos no Brasil estavam fora da escola em 2013. Eram 414 mil adolescentes entre 15 e 17 anos com pelo menos 1 filho em 2013, e dessas, apenas 104 mil estavam na escola, a grande maioria não tinha escola ou trabalho. Essa situação já era alarmante antes mesmo da pandemia, mas esse momento nos traz um cenário de crise ainda mais profunda em que, sem o devido tratamento da escola como serviço essencial, as meninas, principalmente, acabam mais distanciadas do acesso à educação. A espera pela creche, o trabalho doméstico e de cuidado ainda a cargo das mulheres na sua maioria, são fatores decisivos para esse distanciamento da escola. A discrepância no trabalho doméstico é apontada pelo IBGE: entre a população ocupada, as mulheres dedicam ao menos 8 horas a mais para o trabalho doméstico não remunerado do que os homens semanalmente, e a diferença chega a 11 horas entre aqueles não ocupados. Essas diferenças certamente não começam na vida adulta.
Mas é preciso compreender que não se trata apenas de uma discussão situacional. A gravidez na adolescência é, antes de um problema, um fato aceito entre as meninas mais pobres, diferente das classes mais abastadas, onde existe acesso aos direitos mais básicos e as perspectivas de ascensão social de uma garota não começam nem acabam na maternidade e no casamento. Isso se dá por toda a construção histórica do papel da mulher, que hoje se propaga através da moral cristã, especialmente nas igrejas neopentecostais, que vem ganhando força nos bairros mais pobres, e quanto esses ideais ainda influenciam o pensamento entre os menos favorecidos.
Em certo momento histórico, as mulheres tinham qualidade de “divindade” por serem quem gera outra vida, eram a figura mais importante em seus grupos familiares. Com o tempo e as modificações da estrutura social, elas se tornaram reféns dessa mesma “benção”. Responsáveis pelo trabalho doméstico e o cuidado das crianças, as mulheres, desde o início não foram inseridas na produção social, dependendo da figura masculina para garantia de sobrevivência.
A moral religiosa, em que se vale a classe dominante, é imposta a partir dos livros de Moisés. Se estabeleceu e se tornou popular com o Judaísmo e o Cristianismo, e gerou um novo argumento para justificar a submissão da mulher ao homem. Agora, segundo a vontade de Deus, e por um erro atribuído à própria mulher pela desobediência de consumir o fruto proibido, disse Deus à Eva no momento do julgamento: “Multiplicarei os sofrimento do teu parto; darás à luz com dor teus filhos; teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio” (Gênesis 3:16). Em outra passagem o Apóstolo Paulo deixa de forma mais clara quais seriam os deveres das mulheres perante os homens, “As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao senhor, ²³pois o marido é o chefe da mulher, como cristo é o chefe da igreja, seu corpo, da qual ele é o salvador. ²⁴Mas como a igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos (Efésios 5:22 – 24).
A “palavra de Deus” serviu sempre aos interesses de quem concentrava, e concentra, a maior parte da riqueza do mundo, a classe dominante. Ainda hoje é dada como verdade por grupos religiosos, a história reprodutiva e a concepção de família monogâmica a partir do que diz a Bíblia, desconsiderando a construção histórica e dialética das relações humanas e seu desenvolvimento ao longo do tempo. Engels, no prefácio à 4ª edição de “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, escreve sobre essa questão, dizendo: “Até o início da década de sessenta (Séc. XIX), não se poderia sequer pensar em uma história da família. As Ciências históricas ainda se achavam, nesse domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família, pintada nesses cinco livros com maior riqueza de minúcias do que em qualquer outro lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se identificava com a família burguesa de hoje, de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história.”
Numa época onde se vivia em completa escassez, a selvageria e a barbárie eram a forma de organização social que o homem dispunha, sendo mais compreensível a existência da promiscuidade, da gravidez precoce, e até mesmo o incesto praticado entre alguns povos. Mas hoje, com a capacidade produtiva cada vez mais desenvolvida, é difícil compreender tantas pessoas vivendo situações muito próximas de como vivia a humanidade há milhares de anos. A gravidez precoce é um dos símbolos desse atraso e continuará sendo aceita pelo próprio povo enquanto a mulher estiver destinada ao papel de procriadora, enquanto o Estado não propiciar subsídios para retirar a mulher do espaço de trabalho que não gera valor, situação reforçada pela moral religiosa. É a condição necessária para que o modo de produção capitalista se aproprie da condição materna à mulher, e a marginalize no processo produtivo, e consequentemente na estrutura de classes, aspecto fundamental para essa desigualdade estrutural. Assim, se faz necessário e urgente atender a demanda, não só de prevenção à gravidez na adolescência, mas sobretudo da assistência à maternidade para que essas mesmas jovens que por alguma razão engravidaram não tenham seu direito de acesso à educação corrompido. Para que, mesmo sendo mães, possam aspirar uma formação acadêmica, ascensão profissional, e romper com esse ciclo de manutenção da pobreza entre mulheres com baixíssima instrução, cada vez mais dependentes, vulneráveis e distantes de sua própria emancipação.
*Keila Pereira é estudante de Letras da USP, dirigente da Juventude Pátria Livre e do PCdoB São Paulo.
**Caio Guilherme é coordenador estadual da Juventude Pátria Livre – São Paulo.