Os números que retratam a mulher na sociedade hoje, revelam uma dura realidade que se mantém ao longo do tempo no que compete à desigualdade de gênero e morosidade na conquista de direitos. As mulheres têm acesso a postos de trabalho e salários inferiores, são parte de estatísticas estarrecedoras de violência (o feminicídio como uma pandemia), estão na luta constante pelo acesso à saúde e à educação – de si mesmas e de seus filhos. Destaque-se: condições agravadas ao considerar o recorte de raça, ao lançar o olhar sobre a realidade da mulher negra.

Por Telma Patricia de Moraes Santos*

Vivemos uma sociedade na qual o direito ao voto feminino não é ainda centenário, na qual o divórcio tem menos de 50 anos (embora uma possibilidade a ambos os sexos, sabemos o que significava para a mulher ser ‘desquitada’, aliás, ‘significava’?), na qual somente em 2011 a primeira representante do gênero alcança o posto de presidenta do país e sofre um golpe – ainda que um golpe dos interesses do capital – carregado de ataques machistas e misóginos.

A crise do capital assola a classe trabalhadora: no Brasil ultrapassamos 14 milhões de desempregados – isso sem contar aqueles que ocupam subempregos, compondo uma massa invisibilizada e romantizada por meio do empreendedorismo, que devolve para o indivíduo a responsabilidade da resposta à desestrutura social e falta de promoção da indústria nacional e geração de empregos, transforma a responsabilidade do Estado em falta de vontade e gosto pela dependência por parte do indivíduo – tudo é individual, ‘fracasso’ e ‘sucesso’.

Com certeza o universo da mulher é o mais enfraquecido, o mais desestruturado após os ataques sofridos na história recente do Brasil, ataques que congelaram os investimentos sociais – já carentes de ampliação, ataques aos direitos dos trabalhadores e à previdência social – todos tratados como reforma maquiando o desmantelamento.

Na pandemia, os prejuízos à mulher trabalhadora também se acentuaram: sua participação no mercado de trabalho caiu para 46%, o menor índice em 30 anos, desde 1991 esse número não era inferior a 50%. Esse dado destaca, mais uma vez, qual é o gênero mais atingido nos tempos de crise: a mulher é a responsável pelo cuidado da família, seja com relação aos filhos que estão afastados da escola, sejam os entes adoecidos, logo, para ela é muito mais difícil estar no mercado de trabalho neste cenário, além da disputa pelos postos tendenciar preferência aos homens.

Esta última referência aos filhos afastados da escola presencial, abre um parênteses importante sobre papeis sociais: a mulher assume o encontro de alternativas para o cuidado de seus filhos; a escola, por sua vez, está no centro do debate entre o direito à educação e o cuidado das crianças e adolescentes – função assumida socialmente como materna, oprimindo sobremaneira a mulher trabalhadora da educação que se desdobra para cumprir todos os papéis a ela atribuídos como mãe responsável pela saúde física e emocional de seus filhos na pandemia, mãe responsável pelo acompanhamento das atividades escolares realizadas em casa, mulher responsável pela engrenagem doméstica, professora responsável pela criação de conteúdo online que seja dinâmico e atrativo para os alunos além da alimentação de todas as novas ferramentas disponibilizadas pela escola.

Refletir sobre estas questões da mulher, da trabalhadora, destaca a importância do debate emancipacionista, a importância da discussão de um feminismo verdadeiramente popular. A base é a liberdade, é a igualdade em direitos e esse desafio não será vencido enquanto as condições forem opressoras.

Hoje precisamos estar alertas inclusive para a propaganda de liberdade que muitas vezes esconde uma mensagem também de sobrecarga. Se refletimos a fundo sobre o uso da expressão, por exemplo, “lugar de mulher é onde ela quiser”, podemos perguntar: que condições estão dadas para que a mulher possa escolher o lugar que deseja estar?

Se os questionamentos não são feitos corremos o risco de cair na armadilha da romantização da sobrecarga, da superexploração da ‘liberdade’ da mulher, afinal, trata-se de discurso sobre ‘poder estar’ ou trata-se de responder ‘como’ a mulher vai ocupar os mais variados espaços? A mulher pode ser líder no trabalho? Como ela vai se dedicar se ainda é a responsável por organizar quase 100% das necessidades domésticas e familiares? Como a mulher consegue se capacitar? Como a mulher consegue participar dos espaços de debate político? Como a mulher vai cuidar de sua saúde para não morrer se precisa ocupar-se da saúde de todos?

A reflexão, o debate, precisam ser sinceros, para não cairmos na próxima armadilha que é tornar regra a exceção, ou seja, oprimir com o discurso identitário e meritocrático àquelas que não conseguem libertar-se do jugo da diferença e da falta de oportunidades, usando exemplos das que carregam um mundo em seus ombros e prosperam: não precisamos ser super mulheres.

Isso acontece com frequência, as homenagens às mulheres e mães tradicionalmente trazem referências à sobrecarga de trabalho e responsabilidades como algo louvável, vemos matérias que dizem da força de uma mulher de 101 anos procurando emprego, elogia-se a mãe que mora na rua com suas filhas e mantém a calçada perfeitamente limpa. Precisamos falar da falta de uma aposentadoria capaz de trazer dignidade a essa mulher trabalhadora. Precisamos falar de mães que estão na rua com seus filhos e não há limpeza que possa sobressair a esse fato: qual é a oportunidade de trabalho que essa e outras mães terão para dar condições de sustento digno a ela mesma e seus filhos? O lugar da mulher é onde ela quiser e certamente não são estes os lugares que estas mulheres gostariam de estar.

O feminismo precisa ser popular, precisa representar o diálogo com as mazelas do dia a dia da mulher, precisa ser capaz de falar com mulheres e homens que vivem como explorados e não conseguem vislumbrar como essa realidade pode ser diferente.

O feminismo precisa debater a equidade e a consciência de classe, ainda que seja difícil tornar ambos conceitos experimentados.
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*Telma Patricia de Moraes Santos é integrante do CE de Minas Gerais e Diretora do Sinpro Minas

(BL)

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