Abro um diálogo com o item 39 do documento-base da 3ª Conferência Nacional do PCdoB sobre a Emancipação das Mulheres que afirma: “A negação teórica do identitarismo, da luta fragmentária, não pode levar as(os) comunistas a negarem a existência de opressões específicas, que obstaculizam a emancipação pessoal e coletiva ”, considero relevante chamar a atenção para a relação do feminismo emancipacionista, que se pauta no marxismo, com a questão da identidade, uma vez que ela não necessariamente apaga a opressão de classe ou a luta anticapitalista.
Por Julieta Palmeira*
O identitarismo sim, porque é um meio e um fim em si mesmo. Mas o reconhecimento de identidades diferentes ou de identidades iguais não quer dizer em si fragmentação, ao contrário.
Quando Marx falava em transformar a classe em si em classe para si, estava falando de identidade de classe como elemento fundamental para a luta anticapitalista? (1) É a revolucionária socialista alemã Klara Zetkin, na minha opinião, quem iniciou, com maior ênfase, o debate de que a questão da identidade não pode ser considerada apartada da luta revolucionária e contra o capitalismo (2).
Questões como sexualidade, aborto, trabalho feminino, dominação patriarcal e outras não podem ficar subsumidas para o feminismo emancipacionista e algumas delas com o risco de serem apropriadas indevidamente por outros feminismos. Algumas dessas questões nos levam a questão do trabalho produtivo e reprodutivo, divisão sexual do trabalho tema que não estamos tratando nesse breve diálogo com esse item do documento-base.
Para o feminismo emancipacionista na atualidade é necessário estabelecer as pontes da identidade com a dimensão de classe, o racismo estrutural e o patriarcado e, o entrelaçamento dessas dimensões na sociedade brasileira, apontada por feministas comunistas a exemplo de Loreta Valadares (3) e outras, desde a década de 1990.
A questão é avançar mais para analisar o entrelaçamento dessas dimensões na realidade brasileira, fortalecendo as ideias do feminismo emancipacionista que é anticapitalista, revolucionário e transformador. Existem narrativas diferentes em disputa no movimento feminista.
O combate à violência contra as mulheres, em especial a doméstica e familiar, une uma ampla faixa de feminismos, do feminismo liberal ao feminismo marxista, emancipacionista. Mas quais as causas e como superar essa violência de gênero que faz com que as mulheres negras, de comunidades periféricas, sejam as mais atingidas, são questões encaradas de forma diferente no movimento feminista ou pelos feminismos.
Para o feminismo emancipacionista para combater a violência contra as mulheres, é preciso identificar a raiz dessa violência assentada em nossa sociedade, o seu entrelaçamento com a dimensão de classe, raça e gênero e não somente considerá-la uma questão cultural que, sem dúvida, a violência de gênero também tem a ver.
Da mesma maneira, a luta por ampliar a representação feminina na política e em outros espaços de decisão é comum a vários feminismos. Mas para feminismo emancipacionista e outros é necessário ampliar a participação na política para fortalecimento da democracia e caminhar para romper com a divisão sexual do trabalho. E mais para dar celeridade histórica para a equidade de gênero e o rompimento das relações de dominação patriarcal retroalimentada no capitalismo. Trata-se de eleger mulheres também identificadas com o projeto transformador da sociedade brasileira. Para o feminismo liberal tem foco no empoderamento da mulher dentro do capitalismo e relacionado a ampliar as oportunidades. São visões excludentes.
Nesse momento em que o feminismo emancipacionista pretende alcançar mais corações e mentes, atingir uma dimensão popular, não contribui considerar determinadas pautas como simplesmente “específicas”, ou identitaristas ainda mais quando elas confrontam com o sistema de opressão. Estar lado a lado com as mulheres em sua mobilização pela vida e pela democracia, inclui reconhecimento também de diferenças entre elas e as identidades. Um exemplo são os impactos da crise de saúde e da repercussão da retração da atividade econômica, resultantes de medidas sanitárias necessárias para combater à pandemia da Covid-19.
O impacto é diferente para as mulheres negras, por exemplo, porque houve um aguçamento diante de desigualdades pré-existentes na dimensão de classe, gênero e raça e seu entrelaçamento. Garantir a vida para as mulheres de comunidades periféricas, em sua maioria negras, significa resistir a ampliação da fome, da violência doméstica e familiar e da violência associada ao racismo estrutural que tem ceifado muitas vidas de mulheres e suas filhas e filhos nessas comunidades. Garantir a vida para as mulheres durante a Covid-19 é ter vacina para todo mundo para alcançar a imunidade coletiva e também garantir o direito à saúde das mulheres, seus direitos sexuais e direitos reprodutivos.
Continuam a acontecer as mortes de mulheres pelas dificuldades de acesso aos serviços de saúde ou ainda a manutenção dos altos índices de mortalidade materna – que tem suas causas evitáveis – aliás uma delas é o aborto inseguro e a gestação não monitorada com o pré-natal. É lutar por medidas urgentes do governo federal para geração de renda e emprego e para superar a desigualdade no mundo do trabalho aonde as mulheres estão em postos com vínculos empregatícios mais precários e as chefas de família que criam seus filhos e filhas sozinhas, muitas das pessoas que estavam na informalidade, tem ameaçada a sua subsistência e de suas filhas e filhos.
Essas são algumas das questões concretas das mulheres, entre tantas outras, em sua luta por representação na democracia que queremos fortalecer com o fim da sub-representação feminina e em um projeto de desenvolvimento aonde as mulheres tenham participação. Maioria do eleitorado e da população, as mulheres são ainda minoria política, mas é bom situar que o feminismo tem a ver com uma maioria que possui diferenças e diversidades entre si e por isso se aplica o termo mulheres. Esse é o feminismo emancipacionista e popular.
1- MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, Vol. I, Tomo I, 1985.
2- BADIA, Gilbert. Clara Zetkin: vida e obra. São Paulo: Expressão popular, 2003.
–Discurso realizado em novembro de 1922 (ZETKIN, Klara. “Organizing women”. [On Line].
http://www.marxists.org/archive/zetkin/1922/ci/women.htm. Acesso em março 2021).
3- VALADARES, Loreta K.. As faces do feminismo. São Paulo: Anita Garibaldi, 2007
*Membra do Comitê Central do PCdoB e da Coordenação do Fórum Nacional de Mulheres do PCdoB , da CP do Comitê Estadual do PCdoB/Bahia.