A vereadora do PCdoB no Rio Grande do Sul, Daiana Santos, que recebeu 88.107 votos de gaúchos e gaúchas nas eleições do dia 02 de outubro sendo eleita deputada federal pela legenda, concedeu uma entrevista ao Brasil de Fato, nesta terça-feira (11), e afirmou que “a eleição da bancada é muito importante, ainda mais no cenário que estamos vivendo, do aumento da violência, o fascismo tomando conta.
A gente vê a gratuidade como eles nos atacam, a maneira como olham e desqualificam algo que nem se quer eles têm elementos para fazer. A gente chegar de forma tão expressiva, pautando projeto, isso não é agora só 2022, 2020 já comprovou que tinha esse movimento se consolidando. Não é uma onda como as pessoas dizem, como tentaram nos desqualificar lá depois do resultado das eleições de 2020.Tem toda uma relação que pra gente é muito mais objetiva”.
Leia abaixo a conversa na íntegra.
Nessas eleições, a Bancada Negra conseguiu repetir o feito histórico das eleições municipais de 2020. A Bruna Rodrigues e a Laura Sito foram eleitas as duas primeiras mulheres negras na Assembleia. A Denise Pessôa e tu, as primeiras mulheres gaúchas na Câmara. O que isso representa?
Daiana Santos – Representa a consolidação da luta de um movimento das pessoas que nunca desistiram, dos negros e negras que sempre se mantiveram na ativa, que lutaram pelo direito à moradia e continuam lutando. Que lutaram e lutam pelo direito ao acesso à universidade tão questionado. Nós simbolizamos este movimento que consolida através de algo que é muito importante no espaço da política institucional, política que vem sendo feita pela população.
E quando falam: vocês são um elemento novo, sim, nós somos o elemento novo, mas não é surpresa. Surpresa é somente em 2022 terem olhado para a gente como tal. Surpresa é em 2020 termos rompido o status quo e ainda ter sido questionados pela qualidade do fazer, questionados por várias coisas que não se sustentaram.
Quando chegamos, não chegamos sozinhos, chegamos como fruto de um movimento social, fruto da universidade pública, fruto de política pública. Isso é o mais bonito. Por isso faço questão de o tempo todo evidenciar isso, porque eu sei o impacto que a política pública tem na vida das pessoas quando ela é efetiva. Eu venho desse lugar, eu venho desse espaço que se emancipa através dessa política pública. Então é minha obrigatoriedade manter uma mandata que seja ativa e atuante nessa perspectiva, para a garantia de direitos.
Agora, em nível federal, além do grande desafio do conservadorismo, além do grande desafio de todo esse extremismo, esse ódio pelo ódio sem ter uma sustentação, também temos a possibilidade de estar colocando em evidência um perfil que nunca esteve lá. Isso, vindo do Rio Grande do Sul é muito importante, pois em um estado que se mostra extremamente reacionário, que se mostra conservador ao extremo, eleger uma deputada negra e sapatão, tem sim algo que precisamos olhar.
Assim como vem esse ódio, essa onda que vem chancelada pelo Bolsonaro, também tem um outro movimento de mulheres negras, LGBTQIA+, o povo de comunidade, o povo de terreiro, que olha pra uma figura como eu e diz: “a gente tá aqui, a gente se vê nessa figura”. Isso é importante, porque queremos representação, mas queremos o embate, queremos espaço.
Eu sei o impacto que a política pública tem na vida das pessoas quando ela é efetiva. Eu venho desse lugar, eu venho desse espaço que se emancipa através dessa política pública
O que de fato estamos buscando é a qualidade e as oportunidades de forma igualitária, para que possamos, minimamente, ter a redução desses indicadores de desigualdade. Para que possamos ter a emancipação do nosso povo, entrando e permanecendo na universidade. Para que não falemos no aumento da violência, mas no aumento da empregabilidade dos jovens, da formação, e não da escola sem partido, queremos indivíduos críticos, que pensem e que possam romper esses ciclos que são de extrema violência.
A minha chegada tem muita alegria, mas também tem esse sentimento de ‘que bom que eu me indignei, que bom que eu não aceitei’. Iguais a mim têm muitas outras, muitos outros, e que talvez não tenham tido a mesma oportunidade. A nossa responsabilidade nesse espaço é fazer este movimento, de garantir e ampliar, se não for dessa forma, se não é uma política que produza sentido, que promova esses indivíduos, para mim não faz sentido estar num espaço como esse.
Estamos celebrando porque é um feito para nós, e chegamos de forma expressiva, são quase 90 mil votos. Isso é fruto de um trabalho que não iniciou um mês ou 45 dias antes das eleições, é um trabalho que tem uma constante, é um trabalho que vem sendo pensado, planejado e avaliado, porque é isso que temos que fazer. Chegamos até lá com toda essa base, e também está mobilizando muita gente.
“O que de fato estamos buscando é a qualidade e as oportunidades de forma igualitária, para que possamos, minimamente, ter a redução desses indicadores de desigualdade” / Foto: Cristiane Leite
Além de todo esse trabalho social da base, tu tens uma presença nas redes sociais muito forte e muito constante, e tu és uma das vereadoras, toda a Bancada Negra de alguma forma, que está inovando nas redes sociais. Tu achas que isso também ajudou na tua votação?
Daiana – Acredito que sim, porque a comunicação estruturada é que consegue levar para as pessoas de uma forma que elas compreendam o que está acontecendo. Tentamos o tempo todo fazer isso, a política não pode ser uma coisa distante. Essa forma como sempre nos manteve, isso nunca foi propositivo pra gente, isso criou em nós, inclusive, um distanciamento, sem questionamento, e daí só vem a aceitação.
Fazemos, estamos na rua, nos colocamos à disposição. Colocamos na rede porque é uma ferramenta de luta para que as pessoas construam junto. Essa movimentação constante na rede, essa mobilização é para trazer as pessoas e fazer elas se sentirem parte. Tem que tirar essa distância, não perdendo, claro, a qualidade do conteúdo. Debatemos, discutimos muito, com leveza também.
Então, fazer um samba, por exemplo, é uma forma de fazer a defesa da política da cultura, e debater essa política ali, promovendo esse samba. Fazer um movimento na comunidade, uma roda com as mulheres, trabalhando a arte, o artesanato, as afro-empreendedoras, é uma forma de estarmos falando da economia, de como isso gira, de como isso se constrói. Criamos outras formas para poder chegar até esse público.
Temos que falar do letramento digital obviamente, como um todo, mas ao mesmo tempo sabemos que uma grande parcela da população que é basicamente das comunidades, das periferias, não tem acesso. Sintetizamos isso para que quando essa parcela tiver acesso, ela vai entender a política que estamos falando lá.
Quando chegamos na vila panfletando para fazer a prestação de contas da mandata, estamos falando sobre isso. Tem muita gente que diz até tenho Instagram, mas não consigo acessar. Às vezes, o único telefone que a família tinha foi vendido pra botar comida na mesa. Tem uma distância, mas ao mesmo tempo não significa que eu não tenha que manter o tom principal da comunicação. Quando a informação chegar até a pessoa, ela vai entender, e vai se somar, e vai saber que a nossa luta é uma luta constante. Não é uma luta oportunista.
Tu falas isso e eu fico pensando, várias pessoas dizem, estou cansado da velha política. E tivemos no primeiro turno uma abstenção muito grande, e, parece que está crescendo mais, das pessoas não acreditarem na política, não se identificarem. E tu falando dessa nova política, me parece que é um caminho para envolver.
Daiana – Eu acredito que seja mesmo, porque tu tens que se ver nesse lugar. A política sempre foi muito distante da gente, porque quem representava ela, inclusive nos apresentava ela, era totalmente fora daquilo que a gente se via.
Uma autoridade…
Daiana – A autoridade, tentamos reduzir isso, porque quando se constrói com e não para o resultado é muito mais efetivo. Aqui, na Câmara de Vereadores, tivemos prova disso, com o PL das afro-empreendedoras, que aprovamos depois de muito debate. Passou no plenário, vetou, voltou com algumas questões, ajustou, passou de novo. o projeto foi construído pelas afro-empreendedoras.
E dessa identificação, por perfis como nós, como o meu, o da Laura, da Bruna, da Karen, do Matheus, que são perfis que não se via. É isso que as pessoas falam do novo, são perfis que não são perfis de costume, de ocupação desses espaços. Servimos durante muito tempo para organizar, estruturar e auxiliar em campanha, mas nunca nos viram como capazes de protagonizar um espaço. Nunca nos viram como este indivíduo que estaria aqui desse lado, sentado nessa cadeira.
A população como um todo também entendeu, que quando se fala representatividade em pauta, não é só na fala, é na ação, é naquilo que tu promoves, é naquilo que tu propões, é no debate, é dessa indignação que vem por conta da necessidade, de uma ausência, que é uma constante.
Eu venho desse lugar que chovia e alagava, eu venho desse lugar da ausência da segurança, eu venho desse lugar onde o transporte público é deficitário…
Não sei se vocês lembram ano passado, uma das primeiras ações que eu tive enquanto mandata aqui na Câmara, foi uma solicitação pra que o secretário fosse até o Morro Santana, a vila ali onde eu moro, porque sempre que chovia, alagava. E no exato dia que marcamos com ele, começou a chover, e choveu muito, e choveu durante uma hora, duas horas, e alagou, eu falei para ele: é isso. Eles arrumaram, mas tu entendes que precisou, depois de tanta chamada aberta, protocolo, tanta solicitação que não foi só minha, foi da comunidade toda durante anos sofrendo com isso, no exato dia chega, uma das primeiras ações de uma vereadora que saiu daquele lugar, aconteceu a chuva, e daí eles foram lá pra organizar.
Eu venho desse lugar que chovia e alagava, eu venho desse lugar da ausência da segurança, eu venho desse lugar onde o transporte público é deficitário, eu venho desse lugar onde a luta pra manter a unidade básica aberta é uma constante, eu venho desse espaço onde a vaga não é garantida nem na escola, muito menos na creche. Onde as pessoas judicializam para poder ter o direito básico garantido.
Eu luto por isso, porque para mim produziu muito, a vida melhorou através dessas políticas públicas. Eu chego na universidade pública, eu me formo nessa universidade pública, eu começo a trabalhar em projetos que eu sempre fiz questão de priorizar a comunidade, mulheres em situação de rua, mulheres em situação de violência e vulnerabilidade, população em situação de rua.
Agora pensar nisso num âmbito federal, estruturando isso como algo que seja da garantia do direito, vai ser um grande desafio por conta desse cenário, mas nem por isso vai ser algo que eu não vá fazer, bem pelo contrário, eu tenho essa disposição, isso me move muito.
É isso que eu ia comentar, de uma pessoa oriunda da periferia chegar ao espaço de poder…
Daiana – Isso é muito bonito, e é bonito quando as pessoas se reconhecem, quando tu vês teus pares ali. É esse o nosso ganho real, porque estamos mobilizando essa base.
Olhamos para essa estrutura, para essa pirâmide social, ainda estamos aqui, (sinalizando a base da pirâmide) só que estamos aqui agora. Rompemos essa bolha, estamos fazendo esse movimento de projeção para desestruturar, para desacomodar. E é falando da política, é falando da garantia, é falando da amplitude, não estamos restringindo a nós.
Daqui a uns cinco, 10 anos teremos um outro cenário para uma parcela da população que nunca foi olhada, porque nos colocamos à disposição
Essa é a grande diferença, de uma construção que é de base comunitária e coletiva, e isso certamente vai ter um impacto. Daqui a uns cinco, 10 anos teremos um outro cenário para uma parcela da população que nunca foi olhada, porque nos colocamos à disposição. O que não é fácil, porque sofre violência, porque o tempo todo está sendo atacada. Porque o tempo todo precisa estar criando estratégias, inclusive do cuidado com a saúde física e mental, pelo tanto que se tem de pressão, isso tudo é para recuarmos. Eu entendi dessa forma, e eu não vou dar um passo atrás, porque se fizermos desta forma, dessa maneira como estão nos tencionando a recuar, eu não estou recuando sozinha, agora eu recuo com mais de 90 mil pessoas ao meu lado.
É isto, entende, entre quem vota, quem apoia, e toda uma militância que por vezes nem está na rua, é uma militância que está lá na base comunitária, é a chefe de família que não tem o direito garantido na carteira, que não tem a creche da criança, que está saindo mais cedo e muitas vezes puxando carrinho. Isso simboliza essa mudança, e precisa compreender que se não for dessa forma não vai ser, porque nunca nos quiseram protagonizando absolutamente nada.
Tem outra coisa também que tu mencionaste, a violência política. Recentemente tu postaste no teu Instagram que atiraram bolinhas de gude enquanto estava em uma reportagem.
Daiana – Jogaram essas bolinhas de gude, só que veio de cima isso, tu consegues entender? E assim, é xingamento, jogam isso, se sentem tão tranquilos para fazer, sem se preocupar com o que isso pode de fato causar, é a minha integridade física que está ali exposta. E sem contar na rotina que temos que mudar, uma série de coisas, de ameaças que vêm por todos os lugares, que vem pela rede social, que vem por e-mail. Elas chegam até a gente, sabendo onde moramos, da rotina pessoal que de fato tenho que modificar, porque eu não posso colocar mais ninguém em risco.
Um bom exemplo é a minha mãe. Sempre morei no meio do morro, e como todo mundo sabe, em comunidade todo mundo conhece todo mundo, todo mundo sabe onde mora. Se tu chegares e perguntar onde mora a Daiana, todo mundo vai saber. Então como que eu fico, como vou ter tranquilidade. A minha irmã tem filhos pequenos, o meu irmão tem filhos pequenos que vão pra escola, tenho uma sobrinha adolescente que sai para estudar. Como é que eu vou colocar a vida de tantas pessoas em risco pela covardia, porque isso é uma covardia, de quem não tem projeto político, de quem nunca beneficiou um perfil como o nosso de comunidade, nunca apresentou uma solução para romper esses ciclos.
E quando nos projetamos e começamos a pautar isso, querem nos amedrontar para nos retirar desse cenário. Então eu me retiro desse lugar para não causar nenhum dano físico para ninguém, mas eu não me retiro da luta. Porque se estão fazendo isso pra criar uma forma de desestabilizar, erraram, pegaram a pessoa errada. Não vai ter como negociar com esse tipo de comportamento que nunca nos beneficiou, e agora quer nos amedrontar porque nós estamos aqui.
Nesse lugar eu não chego sozinha, eu sou fruto da luta do movimento, eu sou fruto da luta daqueles que nunca desistiram. É uma luta muito grande. Minha mãe é empregada doméstica, e ela sempre falava que eu tinha que estudar para não ter que limpar o chão. Olha em que lugar nos colocaram, tu entendes? Nos colocaram neste lugar de não ter sequer a possibilidade de sonhar para além disso.
Eu faço questão de que essa gurizada me olhe e diga: eu posso ir aonde eu quiser. Não precisa ser vereador, não precisa ser deputado, não precisa ser governador, prefeito, não precisa ser político. E aqui na mandata temos exemplo disso, tu podes ser jornalista, tu podes ser advogado, tu podes avançar, tu podes sair desse lugar. É isso que demonstramos quando fazemos esse movimento.
É isso que consolidamos enquanto política efetiva. Quando nas comunidades aquela gurizada que nos olha na televisão, e quando a gente chega é lindo de ver, chega e fala assim: eu te vi na TV. Um pequeninho na Restinga pegou o papel e falou assim: vó, ela saiu do papel. Sabe o impacto disso na construção desse indivíduo? É disso que estamos falando, uma política que é próxima, uma política que abraça, que tem afeto, que tem força, mas que não perde a consciência do que é importante, porque prioriza.
Nesse lugar eu não chego sozinha, eu sou fruto da luta do movimento, eu sou fruto da luta daqueles que nunca desistiram. É uma luta muito grande
Tu estás trabalhando na cidade que te elegeu. A Câmara Federal é outro mundo, e é um mundo dos ricos. Como atuar em um espaço como esse?
Daiana – Ainda estamos construindo, primeiro de tudo temos que ter uma base muito boa de onde tu vens, e no partido já estamos debatendo isso, de como fazer para que tenhamos aqui uma estrutura. Pra tu ter uma ideia, só aqui em Porto Alegre eu tive quase 46 mil votos, só em Porto Alegre.
Diante do quanto pra vereadora?
Daiana – Pra vereança foram 3.700 e alguma coisa. Eu chego pra vereadora sem ter nenhuma participação política anterior, foi minha primeira eleição e eu me elegi pra vereadora. Agora, nessa eleição temos uma estrutura que eu não tive antes, e tem uma militância que auxilia na construção. Então temos que cuidar dessa base, primeiro de tudo, tem que fazer com que ela permaneça e amplie para que possamos nos estruturar.
E segundo, é esse o perfil da política que combatemos, é um perfil que restringe, e que ele segura só para elite. Não esperem isso de mim. É justamente por ter vindo com toda essa indignação deste lugar que me projeta.
Essa concentração de poder, de renda, essa forma de fazer política para uma determinada parcela da população afastando a outra, pode ter certeza de que isso não vai acontecer, porque é justamente por olhar para esse cenário e entender que precisamos modificar, criar um debate mais amplo que fale da saúde, e da saúde num contexto mais amplo. Que temos de falar de segurança pública, falar de saúde como segurança pública, falar de educação como saúde.
A concentração de renda só amplia a desigualdade, e essa desigualdade tem cor e sabemos muito bem onde está, e é justamente dela que eu venho, e eu não vou permitir que isso se dê como naturalizado
Vamos tocar o dedo nessa ferida. E o mais bonito de tudo, é não chegar sozinho, chegamos de uma bancada que vem de todos os cantos do Brasil, com este mesmo pensamento político, com essa mesma indignação para movimentar tudo isso, para fazer daquele espaço um espaço de debate, de questionamento, do porquê que estamos assim, do porquê que se manteve dessa forma. O porquê que a grilagem está nos territórios indígenas, porque que os territórios quilombolas também sofrem com isso, porque que a população negra continua sofrendo com o genocídio e não se promove nenhuma ação pra rebater isso em definitivo. Não tem uma política estruturada, porque que as mulheres continuam sendo as vítimas do feminicídio, apontadas, culpabilizadas, e não temos a estrutura política para poder fazer esse enfrentamento.
Temos que promover esse espaço. Temos a educação, a saúde pública sendo atacada, totalmente desestabilizada, sendo tratada como mercadoria. Como fazemos isso? A assistência, assim como a educação e a saúde de 2016 para cá, sofrendo com a restrição de investimento, isso está impactando neste lugar que eu falo que é de onde eu venho. Eu entendi isso e senti isso na pele. Então não tem como legislar, organizar e articular para esses que mais tem, porque foram eles quem concentraram tudo e nunca nos olharam. A concentração de renda só amplia a desigualdade, e essa desigualdade tem cor e sabemos muito bem onde está, e é justamente dela que eu venho, e eu não vou permitir que isso se dê como naturalizado.
E tu chegas no Congresso também com uma das duas primeiras mulheres trans e travestis eleitas. Essa bancada de esquerda que está indo, ela tem muita força. Tu tens aí as mulheres negras trans, tu tens os eleitos pelo MST (Movimento Sem Terra), pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto), tu tens o Guilherme Boulos que vai chegar com 1 milhão de votos. Me parece que essa bancada chega com uma força para mexer com as estruturas da Câmara…
Daiana – Essa diversidade é falar da diversidade do povo. Não somos uno. Essa forma de nos olhar enquanto brancos, héteros, cis, isso foi planejado. A minha família é uma família maravilhosa, é uma mãe com 3 filhos, a minha mãe é uma mãe solo, que criou esses filhos e seguiu. É uma mãe preta, é a cara do Brasil, a cara da família brasileira, que são avós com netos, são sobrinhos e tios e tias, enfim, é a comunidade, por vezes é isso, é uma comunidade familiar.
Esse perfil único que na política era o tom até bem pouco tempo atrás, e ainda com esse levante desse conservadorismo, desse extremismo, continuam apontando para nós como único, tentando nos retirar. Esse é o perfil que vamos rebater, porque estamos falando da diversidade do povo, onde tem indígenas, tem um movimento social ativo, onde tem os negros e negras, onde tem os LGBTs.
Não estamos falando de recortes específicos que ficam isolados, não, estamos falando de quem constrói a sociedade, de onde gira a economia, estamos falando de algo que está ali, mas só que não é respeitado como tal.
Então vai ser muito bonito de fazer o enfrentamento junto com essa bancada, e é esse o cenário que eu digo pra vocês que vai mudar daqui pra frente, daqui há uns anos vamos olhar e dizer, olha que incrível o que aconteceu, porque é isso, porque mobiliza, porque vai criar um debate, as pessoas vão olhar e vão se sentir representadas em definitivo. E tenho certeza de que isso vai desconstruir uma série de verdades absolutas que estão aí, porque nunca tivemos a oportunidade de debatê-las.
E fazer isso é fazer um movimento político estruturante na sociedade. É fazer isso como restituição histórica para o povo preto, como restituição histórica para o povo indígena, como restituição histórica para as mulheres, que até bem pouco tempo não podiam nem votar. E agora se projetam e dão o tom da política. Fácil não vai ser, mas que bom que não chegamos sozinhos, porque esse indivíduo único também ia ser engolido por esse espaço.
E uma bancada que cresce por conta desse extremismo, e que não apresenta um projeto, o projeto é um projeto de ódio, e de rebater tudo aquilo que não se parece com ele. Nós não nos vemos como construção desse país. Então tem que ter essa restituição na política agora efetiva, que amplie as possibilidades daqui pra frente, e isso vai ser lindo, porque agora a gente chega com esse bloco que vai debater essas questões pra estruturar o novo momento.
Como explicar, ao mesmo tempo que temos esse bolsonarismo forte, tem essa onda que é completamente nova, trazendo realmente um respiro nessa política velha?
Daiana – São essas marcas que carregamos dentro de nós, nos nossos corpos, que se projetam politicamente, são essas marcas que vão fazer mobilizar essa estrutura, não tem uma explicação racional para isso. Eu acho que é mais do que não vemos, do que aquilo que vemos, porque tem um sentimento de pertencimento, e que vai somando a outros.
Tem muita gente que não se parece comigo, que não vem do lugar de onde eu venho, que não passou pelas dificuldades que eu passei, que nunca esteve próxima dessa realidade, que se soma. E é isso que estamos falando, de quem vem junto conosco, de quem se estrutura como parte desse enfrentamento, porque sabe que a sociedade precisa ter essa participação. E uma sociedade que tem uma funcionalidade efetiva de política nas comunidades, é uma sociedade que prioriza o povo preto, que emancipa e protagoniza, que reduz esses indicadores de violência, é uma sociedade boa pra todo mundo, ela vai ser uma sociedade boa pra todos.
Não é novo porque sempre esteve, o que está modificando agora é a possibilidade de termos esse debate, por estar ocupando esses lugares, são as oportunidades dentro de um processo de conhecimento acadêmico
Tem esse ganho de consciência que tem que ser coletivo, para que possamos fazer essa movimentação. Sempre vai existir, nos momentos mais progressistas que tivemos enquanto política, ainda existia sim aqueles que rebatiam. Então parece que temos esses dois pesos e duas medidas em algum ponto, mas temos esse equilíbrio voltado e pensado na atuação, na ação. Não é novo porque sempre esteve, o que está modificando agora é a possibilidade de termos esse debate, por estar ocupando esses lugares, são as oportunidades dentro de um processo de conhecimento acadêmico.
Tem algo que tá já acontecendo, com a nossa chegada na política, mas com outras questões, e outras áreas da sociedade, com protagonismo de mais mulheres, com protagonismo de mais negros e negras, ao mesmo tempo que ainda continua essa violência, mas a gente ainda assim tá alavancando, a gente continua rebatendo, não tem mais como retroceder, porque isso é, e falo de novo, isso é parte dessa restituição histórica. Não dá pra gente naturalizar um povo que coloniza e escraviza, mas que continua fazendo isso com as mentes das pessoas em pleno 2022. Então tem toda essa movimentação, e eu acho que isso vai ser um fator que vai trazer para a gente um novo momento, eu confio muito nisso. Óbvio que agora tem toda essa tensão acerca da eleição do Lula.
“Nesse lugar eu não chego sozinha, eu sou fruto da luta do movimento, eu sou fruto da luta daqueles que nunca desistiram” / Foto: Cristiane Leite
E sobre o segundo turno, o que precisa ser feito?
Daiana – Acho que é potencializar o que já estávamos fazendo no primeiro. Não vamos conseguir falar com a população sobre marxismo, leninismo, fascismo, as pessoas não entendem isso. Elas entendem a fome, o desemprego, a dor, a miséria, o ônibus que não funciona, a casa que é alagada, o asfalto, o filho que foi morto, o pé na porta… Elas vão entender de outras maneiras.
Temos de pegar essa construção da política, essa estrutura, e sintetizar para botar aqui na vida real e dizer: Este é o projeto que tu vais apoiar, se tu continuar aqui isso não vai mudar nada, tu tens outra possibilidade agora. É um trabalho do cão, e é mesmo, mas é a única forma que se tem de fazer as pessoas entenderem, porque nos condicionam tanto a uma pobreza, uma miséria, inclusive intelectual, por conta da urgência do dia a dia, que fica difícil de rebater essas questões teóricas, tu não consegues olhar pra isso.
E são esses que nos colocam em meio a esse caos, em meio a miséria, em meio a fome, em meio a desestrutura que volta pra nos render a solução. E essa é uma das coisas que a gente tá rebatendo muito, de demonstrar o que isso significa e onde isso impacta, porque não dá, não tem como tu relativizar algo dessa natureza.
Vemos isso em nível municipal, estadual e federal. Então não dá para negociar, não se negocia, porque estamos falando da estrutura de um direito. Agora mesmo aqui (Câmara de Vereadores) temos bons exemplos, destituindo o Conselho Municipal de Educação, destituindo o Conselho Municipal de Saúde. Retirando direito do trabalhador, remanejando coisas pra poder depois negociar, isso é uma covardia com o povo, então não fica tão difícil de debater. Só que em contrapartida, a gente tem isso, o nosso povo que tá no sufoco, tá estrangulado por conta de todo esse período da pandemia, do desemprego, da miséria, da desvalorização de um salário-mínimo que hoje já não dá pra absolutamente nada, nem pro mínimo, nem pro básico.
Temos que ser muito mais inteligentes, muito mais articulados, pra falar que essa solução que tá sendo apresentada, é uma solução pontual, e que justamente pelo fato de ter acontecido tudo isso é que a gente chegou nesse atual momento. Então a nossa estratégia é elucidar isso, pra que não se dê mais como única possibilidade, é muito difícil.
E tem que enfrentar também as fake News…
Daiana – É essa cegueira política, essa restrição do debate, de uma alienação que é propositiva pra manter as pessoas dessa forma, do medo que vai fazendo com que essas pessoas mais simples, elas não tenham a possibilidade de questionar, e nem querem, porque, eu já não entendo muito, chega essa informação pra mim, do lugar de onde vem, eu penso que tá correto, não vou fazer. Obviamente que deve ser esses comunistas, essas comunistas que estão propondo isso, essa PTzada. Então é triste ver que chegamos nesse momento por conta de toda uma historicidade, não é de agora.
Bolsonaro, ele chega dessa forma tão restrita de conhecimento, resumida, pra poder apresentar pra sociedade não é aleatoriamente, ele vem assim porque esse é o projeto dele. As pessoas falam que ele não tem projeto, tem, o projeto dele é este, entre outras coisas é isso, de alimentar essa alienação e esse distanciamento, porque assim ele se mantém no poder pra essas pessoas que tu trouxeste, eles vão lutar articulando política pra esse nível. E aqui continua o sofrimento no dia, a sobrevivência e a resistência.
Quanto mais lúcido, a gente fica mais triste, mas ao mesmo tempo é importante, porque aí a gente se soma a esse movimento que é um movimento histórico da mesma forma, de pessoas que nunca pararam. Eu trago sempre como exemplo o movimento negro e o movimento de mulheres que é de onde eu venho, que nunca parou, nunca desistiu, e não tinha ganho nenhum, e só estava ali resistindo, resistindo, resistindo, se simboliza em representações que começam ampliar, ampliar, ampliar, até pra nossa chegada, e é nossa responsabilidade dar essa continuidade.
Então é importante também ter isso como parte da nossa consciência política nas ações, porque se não for dessa maneira, a gente não vai ter nenhum ganho pra quem mais precisa, que é essa população.
A responsabilidade de voltar pra essa base, e fazer isso no âmbito político, podendo estruturar, podendo investir, podendo colocar recurso pra essas formações, isso me emociona, porque eu sei que isso impacta na vida das pessoas. É a gente, tá falando de nós, tá falando de uma política muito próxima, tá falando de algo que me toca e é isso também que ao mesmo tempo eu projeto. A gente certamente vai fazer isso, pode esperar. Porque se não for pra ser dessa forma, a gente já tá fadado ao fracasso com tudo que vem se apresentando. Esse acho que é o grande desafio da política, uma política que vem desses espaços, mas que quer retornar com projeto e com possibilidades de emancipação. Isso pra mim é o protagonismo, isso pra mim é fundamental.
__
Fonte: Brasil de Fato
(BL)