Mais de 60% das agressões contra vítimas de violência doméstica são no rosto, apontam estatísticas apresentadas pelo Governo Federal

Por Mariana Rosetti e Paola Churchill – Az MIna

Há cerca de um mês, circularam as imagens das câmeras de um elevador em Natal com uma cena que se repetiria infinitamente nas redes sociais. Durante minutos intermináveis, Igor Eduardo Pereira Cabral, de 29 anos, desferiu 61 socos em Juliana Garcia dos Santos, de 35 anos. O ataque teve como alvo principal o rosto da vítima. Juliana foi submetida a cirurgias reparadoras que duraram horas, enquanto Igor foi preso preventivamente.

Sessenta e um socos. Dezessete facadas. Quatro horas de tortura. Quarenta e uma cirurgias. Antes de cada um desses números — que tentam traduzir a brutalidade de uma violência —, tem uma mulher. Juliana, Elaine, Silvana e Érika são algumas das vítimas de homens que transformaram seus rostos em alvos. Um padrão perverso: em mais de 60% dos casos de violência doméstica, a face é a região mais atingida, segundo estudos indicados pelo Governo Federal brasileiro.

Especialistas ouvidas pela reportagem apontam que o objetivo dos agressores vai além de ferir fisicamente. Trata-se de uma violência simbólica: atacar o rosto é atacar a identidade de mulheres vítimas.

17 facadas

Em 13 anos de relacionamento, Silvana Maria, com 47 anos hoje, viveu todas as fases do ciclo da violência doméstica. Quando saía para jantar com Kléber*, ele a posicionava de frente para a televisão — para que ela só olhasse para lá, nunca para outras pessoas. “Eu achava que era normal, que era amor, cuidado, né? Mas não, é doentio.”

A primeira agressão, um soco no rosto, aconteceu na comemoração de fim de ano de 2019. Foi quando ela solicitou uma medida protetiva. Por 7 meses, Kléber rondou espaços que a ex-mulher frequentava, sem nunca descumprir a distância judicial de 500 metros. Até 24 de setembro de 2020, quando invadiu a casa de Silvana. 

Ela tinha acabado de chegar de uma confraternização e se assustou ao encontrá-lo. Kléber perguntou onde ela estava. “Falei: ‘com as minhas amigas’, e ele pediu meu celular”. Quando ela entregou o aparelho, começaram as agressões. Foram 17 facadas no rosto, no crânio e no peito de Silvana.

Para a psicóloga Liliany Souza, doutora no programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB), a agressão facial representa um dos aspectos mais cruéis da violência contra mulheres por atingir a construção social do feminino. 

“As mulheres são ensinadas que o capital social delas é a beleza. A estética não é apenas aparência — é o que define as chances de reconhecimento no trabalho, nas relações sociais e até na autonomia financeira”, explica Liliany. Enquanto os homens têm sua identidade social construída em torno do provimento e da força, mulheres são condicionadas a associar seu valor à aparência física. 

Silvana ficou internada oito dias no Hospital do Grajaú, zona sul de São Paulo. Passou por cirurgia de reconstrução facial, tendo que colocar uma placa de titânio no local da maçã do rosto e quase perdeu o olho direito. Desde então, tem visão parcial e depende de óculos para enxergar.

41 CIRURGIAS 

O caso de Silvana se enquadra no perfil identificado por Suzana Dourado e Ceci Noronha no artigo ‘Marcas visíveis e invisíveis: danos ao rosto feminino em episódios de violência conjugal’, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva. Elas analisaram 326 boletins de ocorrência da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Salvador, entre 2004 e 2008, e verificaram que em 63,2% dos casos registrados houve trauma na face, cabeça ou pescoço da mulher agredida pelo parceiro íntimo.

A pesquisa também compilou dados de diferentes estudos internacionais realizados entre 1985 e 2010, mostrando que a prevalência de lesões faciais em mulheres vítimas de violência doméstica varia entre 37,5% e 81% dos casos. O levantamento revelou ainda que, na capital baiana, cerca de 28% das agressões foram cometidas por ex-parceiros.

Os padrões se repetem Brasil afora, como mostra o ocorrido com Érika Bargo, uma mulher transexual, de 34 anos, em São Paulo. Ela foi submetida a 41 cirurgias após ter 45% do corpo queimado em 2016 pelo ex-companheiro. Passou quatro meses na UTI, perdeu os movimentos da mão esquerda e deixou de se reconhecer no espelho devido aos ferimentos.

Durante o relacionamento, relembra Érika, “ele dizia: ‘se eu não te matar, vou te deixar toda desfigurada”. Além disso, “todas as vezes que ele me agredia, era sempre no rosto. Para quê? Para eu ficar marcada. Porque assim eu não sairia na rua, e daria tempo de ele fazer o que quisesse comigo.” 

Érika conseguiu romper o relacionamento com a ajuda de uma amiga, que lhe ofereceu abrigo. Planejou a mudança para outra cidade e marcou uma despedida em um bar próximo à avenida Paulista, no centro da cidade. Foi na comemoração que o ex-marido apareceu com uma garrafa de dois litros de etanol.

Ela estava de costas, se preparando para ir embora, quando sentiu o calor das chamas. “Ele jogou [álcool] no meu cabelo, que era comprido. Quando virei, vi que era ele. E foi aí que [o fogo] atingiu a parte mais danificada — o pescoço.” As consequências foram permanentes, com perda dos movimentos da mão direita. “Tenho duas profissões — técnica de enfermagem e cozinheira. Uma não posso exercer devido à mão, a outra, pelo calor, que me incomoda muito.”

Hoje, Érika recebe um auxílio do INSS devido à deficiência no valor aproximado de R$ 1.500, insuficiente para cobrir os custos do tratamento. “O SUS tem uma estrutura, mas nem tudo ali é dado”, explica. Ela ainda precisa comprar medicamentos, cremes para queimaduras e bancar suas despesas rotineiras. A família, mesmo com dificuldades financeiras, fez empréstimos para ajudá-la. O agressor de Érika ficou foragido por três anos antes de ser preso, agora ele espera o julgamento do caso ainda em 2025

4 HORAS DE TORTURA

Quando a empresária Elaine Caparroz, 61 anos, se olhou no espelho do banheiro do Hospital Casa de Portugal, no Rio de Janeiro, entrou em estado de choque. Ela tinha 55 anos quando chegou à unidade com o rosto desfigurado, após ter sido torturada durante 4 horas por Vinícius Batista Serrana, na madrugada de 17 de fevereiro de 2019. 

Depois de 8 meses de conversas pelas redes sociais, em que ela deixou claro sua intenção de amizade, concordou em recebê-lo em casa, na Barra da Tijuca. Da meia-noite às 4h, Elaine foi vítima de espancamento, estupro e agressões físicas e psicológicas. “Ele me dava um monte de socos, aí eu desmaiava e ele ficava esperando eu acordar, e quando acordava, ele recomeçava”, conta. 

Passou cinco dias na UTI. “Ele fraturou meu nariz, fundo de olhos, glândulas orbiculares, fraturou os dentes, estraçalhou meus lábios, minhas bochechas, minhas gengivas. Foi uma coisa absurda. Eu quase morri”, relata Elaine.

Quando finalmente foi para o quarto, encontrou o espelho coberto por uma toalha, uma tentativa da equipe médica de preservá-la. Ao ver o próprio reflexo, desabafou: “meu Deus, eu tinha consciência da gravidade, mas não sabia o nível que era”. Em meio ao espancamento, “ele comentava: ‘nossa, como você é bonita’. Ele queria destruir o meu rosto de todas as formas.”

Elaine conversou com a reportagem d’AzMina por videochamada. Na ocasião, vestia uma faixa de contenção facial já que, dias antes, passou por mais um procedimento cirúrgico para reposicionar músculos da face. Já foram dezenas. Por conta das agressões, sente dores de cabeça e de ouvido até hoje, e dificuldades para enxergar. 

Em dezembro de 2024, a 7ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro determinou que o agressor de Elaine era inimputável — não poderia ser responsabilizado pelo crime – por ter um distúrbio chamado parassonia. Embora não houvesse dúvidas da autoria, uma vez que ele confirmou as agressões, a justiça definiu que ele não precisaria pagar indenização à vítima.

O apartamento alugado onde ocorreu o crime foi inteiramente danificado pelo agressor, mas o prejuízo foi só dela. “Eu tinha R$ 500 mil guardados. Gastei todo o meu dinheiro. Todo. Com tratamentos, para restaurar meu apartamento e para me manter, pois não tinha condições de trabalhar, fisica e psicologicamente”, desabafa.

UM NOVO OLHAR 

Silvana nos recebeu no Instituto Um Novo Olhar, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo — onde ela continua seu processo de reabilitação. A organização oferece ajuda jurídica, psicológica e cirúrgica gratuita a mais de 250 mulheres vítimas de violência. 

Anos depois da tentativa de feminicídio, ela segue fazendo procedimentos a laser para reduzir as cicatrizes. Tem paralisia parcial nos lábios e sensação constante de formigamento na região da cirurgia. Quando está ansiosa ou nervosa, os nervos “travam”, dificultando sua fala. 

Durante o processo de recuperação, precisou de ajuda financeira de amigos e familiares, já que perdeu o comércio que tinha com Kléber*. Ele, por sua vez, ficou um ano foragido, até ser preso e condenado a 14 anos de reclusão por tentativa de feminicídio.

Carla Góes, médica cirurgiã plástica, fundadora do Instituto Um Novo Olhar, observa uma escalada na gravidade das agressões. “Antes era uma explosão de raiva, um empurrão, um tapa. Hoje é feminicídio mesmo. Os homens querem matar”, diz. Os casos mais recentes atendidos por ela envolvem tentativas de degolamento e desfiguração da face. “Eles querem destruir o rosto da mulher. Marcar. Deixá-la envergonhada.” 

A médica reforça que o processo de atendimento de uma mulher vítima de trauma facial é longo e demorado. “Você faz uma cirurgia, aí tem que esperar um período [para fazer outra]. Não pode fazer imediatamente. Tem que ver como o processo cicatricial responde”, explica. 

Às mulheres vítimas, cabe esperar: pelo judiciário, pela recuperação financeira, psicológica e da saúde. “A pessoa que teve o rosto desfigurado, ela não quer que a gente ‘dê um jeito’. Ela quer se ver o mais próximo possível de quem ela era”, define a cirurgiã.

CAMINHOS PARA REPARAÇÃO DOS DANOS

Traumas faciais em vítimas de violência doméstica ainda não têm uma previsão legal específica na legislação brasileira, explica Antilia Reis, advogada especialista em defesa de vulneráveis. Atualmente, quando a lesão corporal é cometida contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, a pena prevista varia de 1 a 4 anos de reclusão.

O Projeto de Lei 1350/22 pretende preencher essa lacuna, propondo pena de 4 a 10 anos de reclusão para crimes de lesão corporal grave contra a mulher que resultem em marcas permanentes, como tatuagens forçadas, queimaduras ou desfigurações. Em tramitação no Congresso, o PL estabelece uma nova tipificação penal, com penas mais severas para agressões que tenham como objetivo “marcar” a vítima — seja por controle, humilhação ou dominação simbólica.

Para ajudar as vítimas financeiramente, a legislação brasileira já oferece alguns caminhos. Um deles está sendo discutido agora no Supremo Tribunal Federal (STF): garantir que mulheres vítimas de violência doméstica recebam uma ajuda mensal do INSS quando precisarem parar de trabalhar por causa das agressões.

O julgamento começou no início de agosto, mas foi interrompido no dia 18, quando o ministro Nunes Marques pediu mais tempo para analisar o caso. Um novo julgamento será marcado quando ele devolver o processo. Mesmo assim, a maioria dos integrantes da Corte já votou a favor da medida.

Quanto ao agressor, a advogada Antilia explica que o juiz pode, na sentença criminal determinar uma reparação financeira por parte do autor. Paralelamente, a vítima pode entrar com ação civil “de indenização por dano material, dano estético e dano moral.”

Segundo Antilia o dano material abrange o custo com tratamento, com plástica, tudo necessário para cuidar das lesões. O dano moral é o que essas cicatrizes geram em termos de situação vexatória ou humilhante. E o estético é o próprio rosto, que muitas vezes fica desfigurado ou com deformidades fisiológicas e na aparência.

DUPLA PUNIÇÃO

Quando falamos especificamente de traumas faciais, em abril deste ano, foi sancionada a Lei 15.116/2025, que criou o Programa de Reconstrução Dentária para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, garantindo acesso a tratamentos odontológicos especializados pelo SUS.

Antilia alerta que as vítimas “passam por um duplo processo de punição — primeiro pela agressão física e segundo pela exclusão social e até laboral”. A especialista comenta que algumas pessoas não conseguem arranjar emprego com o rosto desfigurado, enquanto o agressor muitas vezes está até solto.

O grande desafio do país continua sendo a prevenção. Até que o Brasil invista tanto em prevenir quanto em reparar, mulheres como Silvana, Érika, Elaine e Juliana continuarão pagando com seus rostos — e suas vidas — o preço de uma sociedade que age sempre um passo atrás da tragédia.

*Nome fictício a pedido da vítima.

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