O processo histórico de formação da sociedade brasileira, assentado no racismo e patriarcado na construção de um sistema capitalista dependente e periférico, agrário, monoexportador, resultou numa inserção subalternizada do Brasil no tabuleiro da economia capitalista internacional. De colônia agrário-exportadora, fomos submundo, depois Terceiro Mundo e agora a metáfora “país em desenvolvimento”. Até o limitado “Estado de bem-estar social” sempre foi mais um sonho do que realidade nessas bandas.

Por Ângela Guimarães*

O PCdoB sempre examinou atentamente a intensa exploração capitalista e seus perversos efeitos nas vidas das mulheres brasileiras, bem como atuou na organização política destas visando a superação deste sistema produtor e reprodutor de desigualdades e opressões. Na atual conjuntura, de defensiva das forças democráticas e progressistas, sobressai a importância da formação de uma frente ampla para a derrota do campo ultraliberal e conservador representado por Bolsonaro, inimigo das mulheres e do povo brasileiro e os esforços do Partido para a consecução de um novo Projeto Nacional de Desenvolvimento.

O Brasil lidera, há tempos, os rankings de concentração de renda, pior distribuição de renda e, por consequência, baixíssimos índices de acesso ao saneamento básico, moradia, segurança alimentar, acesso a transporte coletivo de qualidade, ao lado dos indicadores que representam um verdadeiro estado de calamidade pública, com os gravíssimos números do feminicídio, homicídios de jovens negros, superencarceramento de mulheres e homens pobres, de esmagadora maioria negra, essa bomba relógio, prestes a explodir já seria motivo para uma guerra civil, uma insurreição sem precedentes no país. Chama atenção o controle social exercido pelo monopólio privado dos meios de comunicação de massa e, com o advento da revolução tecnológica, a extensa rede de ódio e fake news segue a desinformar a maioria da nossa população, serve também ao propósito de amortecer a revolta, criminalizar as ações dos movimentos sociais e dispersar as iniciativas de organização popular anti-sistêmicas.

Este caos social e econômico ainda não se transformou numa barbárie generalizada porque existe uma intensa rede de solidariedade invisível aos olhos de muitos, lideradas por mulheres do povo, periféricas, pobres, geralmente chefas de família solo, que atuam às margens de um Estado capitalista que não provê renda básica, alimentação, saúde, habitação, segurança, trabalho e renda, creche, para os segmentos mais vulneráveis e que acabam tecendo a trama da resistência cotidiana e silenciosa.

O exercício do Feminismo Popular acontece quando uma vizinha toma conta do filho da outra, enquanto a trabalhadora doméstica sai de madrugada pra trabalhar; quando aciona a prima que trabalha no posto de saúde do bairro para agilizar o atendimento de uma amiga ou vizinha que nunca consegue pegar a senha distribuída sempre em número menor do que a demanda; quando a filha mais jovem ajuda as tias/vizinhas a se inscreverem no Bolsa Família ou no Auxílio Emergencial por não dominarem as “manhas” da tecnologia; quando uma mulher que recebe uma doação de cesta básica e divide ao meio por reconhecer a mesma dificuldade na casa da vizinha ao lado, cujos filhos não se alimentaram nos últimos dias; quando a vizinha que trabalha fora, só compra no mercadinho e padaria do bairro; contrata pequenos serviços na própria vizinhança; são as redes de economia solidária desenvolvidas por meio de associações e cooperativas que têm permitido algum tipo de perspectiva de trabalho e renda, dentre outras inúmeras ações que têm sido fundamentais para a costura da teia cotidiana de apoios mútuos e solidariedade que nos permitiram resistir até aqui. Este feminismo popular, cotidiano que tem por base a solidariedade, nos manteve fortes e vivas até aqui!

Aprendizados acumulados com as históricas experiências da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), organização criada em Salvador, em 1832, com o objetivo de promover ajuda mútua entre pessoas negras, responsável pela compra de alforrias ainda no período escravista e também pela aquisição e distribuição de itens básicos de sobrevivência, como roupas e alimentos, e ajuda a desempregados e doentes no pós- abolição. As irmandades negras, como a da Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira-Bahia, irmandade afro-católica formada exclusivamente por mulheres, que também são de Candomblé, em 1820, que organizavam a compra de alforria, realização de festejos, obrigações religiosas, pagamento de missas, funerais, caridade e vestuário. As experiências do século XX, que seguem iluminando a nossa luta, vão desde os grupos de mães nos bairros populares, responsáveis por organizar círculos de alfabetização de mulheres, distribuição de métodos anticoncepcionais e mesmo creches comunitárias, às Pastorais da Igreja Católica de apoio à criança, à mulher, à população encarcerada, à juventude, aos e às trabalhadoras rurais. Passam também pelos Círculos Operários que, além de organizar a luta sindical, tinham base de atuação nos bairros organizando ações culturais e de convivência social; pelos Terreiros de Candomblé e sua atuação de socorro espiritual, mental e material desde sempre; pelas Escolas de Samba e toda a sua ampla atuação comunitária (não é apenas Carnaval, procure saber!); pelas associações de moradores que lideraram as lutas por urbanização, o movimento contra a carestia, conquista da moradia, transporte e outros direitos; pelos grupos de teatro, dança, capoeira, samba, blocos afro e afoxés, que por meio da expressão artística denunciavam os problemas das periferias e ainda cumpriam o papel de levar arte para a comunidade num contexto de negação de direitos para os segmentos mais vulneráveis; pelos atuais cursinhos pré-vestibulares para estudantes de escolas públicas, entre outras iniciativas. Experiências populares lideradas fortemente por mulheres do povo são a base de um feminismo popular que sempre existiu.

As atuais campanhas de solidariedade no contexto da pandemia são a atualização destas e de muitas outras experiências coletivas que se desenvolvem nas periferias do país. Lideradas por mulheres, sobretudo chefas de família solo, têm se mobilizado por meio de articulações comunitárias e fortalecimento de redes de solidariedade para combater o vírus e reduzir os impactos sociais e econômicos nos territórios. As organizações populares têm buscado articulações com diferentes atores da sociedade civil, como universidades, ONGs e empresas privadas, visando arrecadar doações de alimentos, roupas, itens de higiene pessaol e álcool em gel, cadastro de famílias de baixa renda, combate a fake news, produção de conhecimento, acolhimento e capacitação de jovens moradores de periferias. Precisamos persistir nessas ações de solidariedade!!

Neste contexto, sobressai a importância de mergulharmos e nos amalgamarmos com as necessidades e demandas das mulheres populares, em torno da alimentação, da vacina, do emprego, do auxílio emergencial e outras propostas de renda básica, da habitação, do transporte, da iluminação, das creches públicas, do acesso à Rede de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência, das oportunidades para a juventude periférica, pelo Fora Bolsonaro.

Importa e muito às mulheres comunistas, visibilizar, apoiar e nos amalgamar às essas ações cotidianas do Feminismo Popular e fazer o “ajuntamento”, a soma destas à nossa histórica luta por políticas públicas para emancipação das mulheres como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, creches públicas em tempo integral e também no turno noturno, restaurantes populares e lavanderias públicas, acesso ao mundo do trabalho com direitos, salário igual para trabalho igual, direitos sexuais e reprodutivos com acesso a métodos contraceptivos que evitem gravidez indesejada, direito à maternidade sem perda de emprego, combate ao assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, políticas de saúde no enfrentamento à feminilização das ISTs /AIDS, acesso transporte coletivo adequado e livre de assédio, combate à cultura do estupro, descriminalização do aborto, luta contra a violência obstétrica, acesso e permanência na Universidade, ocupação dos espaços de poder, luta por terra, defesa da vida contra qualquer tipo de violência, ampliação das redes de atendimento às mulheres em situação de violência, enfrentamento ao feminicídio, luta contra a violência LGBTfóbica, contra o racismo, contra a violência política de gênero dentre outras bandeiras de extrema relevância.

Mobilizar a sociedade e trabalhar para constituir fundos populares de auxílio às mulheres chefas de família solo, de apoio a experiências coletivas e individuais de economia solidária e empreendedorismo, organização de redes de atendimento às mulheres em situação de violência nos territórios, de acesso à Justiça, uma infinidade de propostas de ação que devem e precisam emergir deste momento de profundo balanço da nossa atuação, visando o necessário salto político e organizativo do quase centenário Partido Comunista do Brasil entre as mulheres do povo, na perspectiva de um Feminismo Popular, afirmando o PCdoB como dialeticamente este braço de solidariedade imediata e também aquele a apresentar perspectivas de transformação estrutural com o alvorecer do socialismo no Brasil.

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*Por Ângela Guimarães, Socióloga, Presidenta Nacional da Unegro e membro do Comitê Central do PCdoB.

(BL)

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1 Comentário

  1. Um exemplo a ser seguido. Esta rede de solidariedade feminina nada mais é do que o Feminismo Popular em ação, construindo ponte estabelecendo laços. Avante!!!

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