A luta por emancipação das mulheres faz parte da luta geral por emancipação de toda a sociedade, porém adquire seus contornos próprios no Brasil, considerando o longo e penoso processo de colonização tendo por base o sistema escravista e o patriarcado. Embora, nosso povo tenha almejado e lutado pela construção de uma nação livre, soberana, desenvolvida e justa, esta ainda é uma luta a se completar dado que foi obstaculizada em toda a nossa história pela ação de uma elite perversa, entreguista, antinacional, racista e misógina.

Por Ângela Guimarães*

As mulheres têm tido papel histórico nas batalhas gerais por emancipação e também nas lutas contra as profundas desigualdades de gênero, raça e classe que conformam o Brasil. A luta de classes no Brasil sempre teve nas mulheres o protagonismo, seja na resistência dos quilombos e rebeliões negras, com Dandara dos Palmares, Tereza de Benguela, líder do Quilombo do Quariterê, Ana Romana, Lucrécia Maria, Luiza Francisca D’Aráujo, Vicência da Revolta dos Búzios e Luiza Mahin, da Revolta dos Malês, seja nas lutas por Independência onde se destacam a freira Joana Angélica, a combativa Maria Quitéria, que se infiltrou no Exército como o Soldado Medeiros, a pescadora Maria Felipa de Oliveira, que expulsou as tropas portuguesas da Ilha de Itaparica, na heroica Guerrilha do Araguaia, na resistência à Ditadura Militar de 1964-1985. Ou seja, atuamos na luta pela redemocratização, nas greves, nas lutas contra a legislação machista, contra o racismo e o patriarcado, na organização dos movimentos populares históricos e contemporâneos e mesmo na resistência silenciosa e cotidiana das mulheres negras e periféricas, chefas das famílias em situação de pobreza para criar, educar e orientar seus filhos, seguimos contestando a exploração capitalista, denunciando a violência machista e racista presente na sociedade brasileira.

As consequências dessa inserção subordinada refletiram na arquitetura econômica e de poder totalmente desigual e assimétrica, resultando numa permanente depreciação das mulheres e da população negra. Daí decorre, exposição e desvalorização permanentes de suas vidas, atraso na inserção educacional, precária inserção no mundo do trabalho, profundas desigualdades salariais, exposição à violência doméstica e estatal, contradição artificial entre maternidade e carreira, barreiras no acesso ao topo das carreiras, aprisionamento nas profissões ligadas ao cuidado, exclusiva responsabilização pelo trabalho doméstico, dentre outros mecanismos que retêm as mulheres, especialmente as mulheres negras, nas piores posições nos indicadores sociais e econômicos. São notáveis, entretanto, os esforços coletivos no sentido da ampliação do acesso à educação, ao mundo do trabalho, as conquistas legislativas e de políticas públicas visando reduzir as estruturais desigualdades de gênero, raça e classe na sociedade brasileira.

A luta pelo socialismo, historicamente, teve entre seus desafios estratégicos a luta pela emancipação das mulheres como parte da luta geral pela emancipação da classe trabalhadora. Clara Zetkin, Alexandra Kollontai e as feministas emancipacionistas brasileiras como Loreta Valadares, Liége Rocha, Julieta Palmeira, Ana Rocha, Jussara Cony, Alice Portugal, Fátima Oliveira, Jandira Feghali, Olívia Santana, Manuela D’Ávila têm feito este chamado desde os primórdios da organização socialista no mundo e no Brasil não é diferente. Temos certeza que a revolução socialista no Brasil só será possível com a participação de todas as mulheres, cis e LGBTs, negras, brancas, indígenas junto aos homens avançados e comprometidos com a construção de uma nova ordem social sem exploração de nenhum tipo.

A pior pandemia dos últimos cem anos, acontece exatamente num momento de grave crise do sistema capitalista em sua fase de hiper-financeirização, com o Brasil sob o comando de um governo autoritário, ultraliberal e neofascista. A Covid-19 teve, em território nacional, um estrago ainda mais avassalador devido ao negacionismo e condução genocida de Bolsonaro. Esta perversa combinação tem impactos muito maiores na vida das mulheres, significando mais adoecimento e mortes por Covid-19, desemprego, superexploração e precarização do trabalho, sobrecarga com a exclusividade dos cuidados domésticos, com idosos e crianças, sobrecarga nos trabalhos essenciais e exposição de suas vidas como saúde, transporte, comércio, além de outras dimensões que sequer são visíveis à sociedade como as violências e exclusões das trabalhadoras domésticas, das mulheres LGBTs, especialmente as trans, das catadoras de materiais recicláveis, das trabalhadoras informais, a situação das pessoas em situação de rua e as trabalhadoras do sexo. A pandemia nada tem de democrática, não estamos no mesmo barco!

O governo Bolsonaro, que personificou no Brasil a ascensão das forças de extrema direita, autoritárias na política, ultraliberais na economia e retrógadas nos costumes, vem impactando a vida do povo, em especial das mulheres, com perda de direitos, desmonte de políticas públicas e a propagação de um papel conservador para as mulheres. Com isso, resultou no empobrecimento avassalador das mulheres das periferias, o Instituto Data Favela (abril de 2020) em pesquisa realizada em 260 favelas no começo da pandemia já havia chamado atenção ao fato de que nove entre dez mães das favelas apresentaram dificuldade de comprar comida após um mês sem renda, um ano depois o cenário é ainda mais dramático. Segundo o mesmo Instituto 41% de moradores de favelas, mesmo solicitando, não conseguiram acessar o auxílio emergencial em 2020.

O fascismo se alimenta do ódio e da violência. Essa violência se constitui como permanente mecanismo de controle social e de seleção artificial do sistema capitalista, racista e misógino e não tem poupado as vidas de mulheres, na pandemia e antes dela, com o crescimento exponencial da violência doméstica e do feminicídio nas condições de isolamento social com os agressores, a violência estatal, que não tem poupado as vidas das mulheres negras, e mesmo quando atingem os homens, sobretudo jovens negros pela ação da polícia racista, deixa rastro de sangue, dor e desespero na vida das mães, irmãs, filhas e todo o entorno feminino dessas vítimas, marcando pra sempre a história das famílias e das comunidades. Segundo o Atlas da Violência (IPEA, 2019) foram 65 mil homicídios no ano de 2017 no Brasil, destes 95% eram homens, 75% negros e 60% jovens.

Um verdadeiro genocídio negro. Um horror que não comove, que não gera denúncia, que não mobiliza a sociedade devido à naturalização e banalização das mortes de pessoas negras, que nos remete ao racismo estrutural presente em toda a nossa história. Vale ressaltar que, também, estes crimes encontram na impunidade seu estímulo, posto que menos de 8% dos homicídios são solucionados no Brasil. O entrelaçamento entre gênero, raça e classe se expressa ainda nos dois terços das mulheres assassinadas no Brasil que são negras. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017 conforme atesta o Atlas da Violência (IPEA, 2019), a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 30%. Ainda segundo o mesmo instituto, a mulher negra está mais presente nas camadas de baixa renda e de menor nível educacional, vivendo em ambiente e condições de maior exposição à violência, dentro e fora de casa.

Igualmente trágico é o quadro do sistema prisional que faz do Brasil a terceira população carcerária do mundo, com mais de 886 mil pessoas presas (CNJ, 2020), na sua maioria esmagadora homens negros cujas mães, esposas e filhas têm seus direitos cotidianamente violados nas visitas, quando são humilhadas em filas quilométricas expostas ao sol, abusadas e expostas sexualmente nas revistas humilhantes e agredidas moralmente pelos crimes cometidos por seus parentes encarcerados.

Similar é a situação das mulheres encarceradas no Brasil, um crescimento de 700% entre 2000 e 2016, resultando num total de 40 mil mulheres encarceradas enfrentando as condições draconianas das prisões brasileiras (INFOPEN,2016). O aumento do encarceramento feminino no Brasil revela a situação de pobreza, seletividade penal, desigualdades de gênero e raça e representa um contínuo de violações de direitos humanos como: péssimo atendimento à saúde das gestantes, lactantes e mães; separação abrupta das mães e seus/suas filhos/as, incluindo adoções à revelia; falta de notícias dos/as filhos/as; ausência de materiais de uso pessoal como absorventes e de roupas íntimas; restrições e/ou a impossibilidade, para viver a identidade afetiva, psicológica e física; pouquíssimas visitas, vivendo um verdadeiro abandono da família e da comunidade, entre outros. Precisamos discutir violação dos direitos humanos, políticas de guerra às drogas e negação do acesso à Justiça, esta é uma realidade vivida pelas mulheres da periferia em todo o Brasil e que o Feminismo não pode ignorar.

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*Por Ângela Guimarães, Socióloga, Presidenta Nacional da Unegro e membro do Comitê Central do PCdoB.

(BL)

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1 Comentário

  1. Maravilhoso artigo. Inspirador e mola propulsora para combatermos as desigualdades sociais, principalmente às das mulheres e homens negros!!

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